sábado, 29 de maio de 2010

A violência e impunidade no campo


O texto abaixo foi escrito em 2005, mas o assunto nunca esteve tão atual e o problema tão latente. Hoje, cinco anos após a elaboração deste texto, a violência ganha proporções impensadas, expondo a fragilidade e falta de segurança do homem do campo.

Hoje, em uma aula ministrada na Universidade Estadual Vale do Acaraú, na turma do IV Período, com a disciplina Educação no Campo, tomamos conhecimento acerca de diversos assaltos, praticados com requinte de crueldade, na área rural onde algumas colegas nossas residem e trabalham. Uma aluna grávida teve uma arma apontada para a cabeça quarta-feira passada, quando se dirigia à escola onde trabalha. Presenciou um assalto que acontecia durante sua passagem, onde um agricultir foi fortemente espancado pelos bandidos. Até agora, não houve prisões nem noticias dos suspeitos, que continuam agindo livremente na estrada que vai para São Severino, um municipio de Gravatá.



INTRODUÇÃO


A Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura – CONTAG, é uma entidade sindical nacional que, junto com 27 Federações Estaduais e mais de 3.700 Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de todo o país, formam o Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR. Na base de representação da CONTAG, encontram-se mais de 25 milhões de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra, agricultores familiares, meeiros, parceiros, arrendatários e assalariados rurais. O MSTTR, ao longo de sua história, vem atuando na construção de políticas e ações amplas, que visam atender às especificidades demandadas por homens, mulheres, idosos, jovens e crianças de todas as raças, credos e opção política, que vivem e trabalham no meio rural.

A luta pela reforma agrária, pela garantia dos direitos humanos e contra a violência e impunidade no campo, está presente no dia-a dia do MSTTR. Portanto, é muito importante a proposta da UITA de construir esta Campanha, buscando o envolvimento e a solidariedade internacionais contra a grave situação de violência a que estão expostos os trabalhadores e trabalhadoras rurais brasileiros e aqueles que os apóiam.

É fundamental somar os esforços das entidades internacionais às lutas cotidianas que os

trabalhadores e trabalhadoras rurais desenvolvem em todo o Brasil. É importante, também, que esta campanha se some à Campanha internacional e nacional “Reforma agrária: sustentabilidade ambiental e direitos humanos” que está sendo desenvolvida pelo Fórum pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, que reúne várias entidades e organizações, inclusive a CONTAG. Neste trabalho, procuramos demonstrar as raízes e as características da violência promovida contra trabalhadores e trabalhadoras rurais brasileiros e suas lideranças, visando subsidiar as discussões com as afiliadas à UITA e demais parceiros, buscando ampliar os apoios e solidariedade à luta pela terra no Brasil e pelo combate à violência e impunidade no campo.


1. AS PRINCIPAIS RAZÕES DA VIOLÊNCIA NO CAMPO


a) A concentração da terra


A violência no campo no Brasil está diretamente vinculada à concentração da terra e do poder. A concentração fundiária no Brasil é uma das maiores do mundo. Menos de 50 mil proprietários rurais possuem áreas superiores a mil hectares e controlam 50% das terras cadastradas. Cerca de 1% dos proprietários detém 46% de todas as terras. Segundo dados do INCRA, existem cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas no Brasil. Ao mesmo tempo, mais de quatro milhões e meio de famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais não possuem terra e vivem num estado de pobreza extrema.

A concentração de terra está diretamente relacionada como a concentração do poder. Os poucos donos das terras, que sempre receberam privilégios e exerceram influência sobre as instâncias do Estado brasileiro, além de se sentirem donos da natureza e com isso explorá-la até à exaustão, também se comportam como se fossem donos das pessoas, especialmente as mais pobres. Em nome de seus interesses pessoais, financeiros e políticos, os latifundiários exploram, escravizam, ameaçam, torturam e matam aqueles e aquelas que ousam lutar contra seus privilégios.

A concentração fundiária brasileira, que tem sua origem na colonização feita pelos Portugueses, foi sendo aprimorada ao longo dos séculos, apoiada pelas políticas governamentais que sempre privilegiaram o latifúndio em detrimento da realização da reforma agrária ou da agricultura familiar. Atualmente, o modelo agrícola embasado no agronegócio monocultor e voltado para a exportação, se expande rapidamente. Fazendeiros, madeireiros, grandes plantadores da soja, de algodão, cana de açúcar, etc., em nome da modernidade e da produtividade, avançam sobre terras públicas, áreas indígenas, áreas ocupados por populações tradicionais e posseiros, ribeirinhos e outros. No afã de ampliar suas terras, acirram os conflitos no campo e produzem a violência das mais variadas formas como a super exploração no trabalho e o trabalho escravo, a grilagem das terras, os crimes ambientais, os espancamentos, seqüestros, ameaças e os assassinatos.


b) A impunidade


A outra grande razão para a violência no campo no Brasil é, sem dúvida a impunidade. A impunidade é uma importante cúmplice da violência e traz para a cena, além da não penalização dos responsáveis pelos crimes, uma situação de atemorização da população e de impotência das autoridades.

Para se ter uma idéia da gravidade da situação de impunidade no campo, basta que se analise os dados registrados pela CPT - Comissão Pastoral da Terra, constatando que durante os últimos 20 anos foram assassinados mais de 1.385 trabalhadores rurais, lideranças e ativistas ligados aos movimentos sociais de luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil. Destes casos, somente 77 foram julgados, com a condenação de apenas 15 mandantes e 65 executores. 523 destes assassinatos aconteceram no estado do Pará e lá, apenas 10 casos foram a julgamento, com a condenação de 5 mandantes e 8 executores. Mesmo assim, todos os executores condenados fugiram da cadeia. Três fazendeiros, condenados como mandantes de assassinatos de sindicalistas estão em liberdade, pois um cumpre sua pena em prisão domiciliar e os outros dois aguardam julgamento de recursos em liberdade há dois anos, devido à parcialidade e morosidade da Justiça.

O massacre de Eldorado de Carajás, (onde 17 trabalhadores sem terra foram assassinados pela polícia), é um exemplo de como a Justiça age no tratamento dos crimes contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais. Dos 154 acusados levados ao banco dos réus, apenas dois comandantes da tropa foram condenados.

Outro caso emblemático da impunidade é o do assassinato de Margarida Maria Alves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, no Estado do Paraíba. Ela foi assassinada por defender os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras das plantações de cana de açúcar da região. Após mais de 20 anos, com o julgamento adiado por 06 vezes, o tribunal absolveu o fazendeiro Zito Buarque, acusado pelo assassinato.

Ainda como reflexo da situação de impunidade, existem atualmente 145 pessoas ameaçadas de morte, segundo dados parciais da CPT. São trabalhadores rurais sem terra, acampados, assentados e agricultores familiares, dirigentes sindicais, funcionários públicos, agentes pastorais, religiosos, índios, quilombolas entre outros. No estado do Pará, há uma “Lista dos marcados para morrer”, onde constam nomes de dirigentes sindicais, políticos e lideranças locais, em uma lista elaborada pelos fazendeiros da região para serem eliminados pelos jagunços. O mais triste é que, apesar das inúmeras denúncias feitas às autoridades municipais, estaduais e federais, as ameaças estão sendo cumpridas e a lista, só não diminui porque no lugar dos assassinados, novas vítimas em potencial são incluídas na relação, sem que os culpados sejam punidos pelos seus crimes.


2. AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA VIOLÊNCIA NO CAMPO


a) É seletiva


Apesar da violência dos latifundiários vitimar qualquer um que se oponha a seus interesses, ela atinge, principalmente, às pessoas que tenham poder de influência e de formação de opinião sobre as comunidades. Por isso, dizemos que ela é seletiva, pois suas principais vítimas são os dirigentes sindicais, lideranças sociais, agentes pastorais e comunitários, religiosos, parlamentares, advogados, etc.

É importante destacar que a organização para os crimes envolve uma tabela de preços para as vítimas. Quanto mais influente for a liderança a ser eliminada, mais alto é o valor a ser pago pelo seu assassinato, mesmo que estes sejam irrisórios.


b) É Institucional


Uma outra característica da violência no campo é a sua institucionalidade. Quase sempre, as ações de repressão às lutas que geram as agressões e desrespeito aos direitos humanos são apoiadas pelos organismos do Estado, em especial as polícias. A interpretação das leis e as determinações do poder judiciário, colocando o direito à propriedade acima do direito à vida e à sobrevivência, na maioria das vezes, corrobora e sustenta as ações dos demais poderes, que não exitam em colocar o aparato público a favor dos latifundiários e contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais. Para exemplificar, registra-se que nos anos de 2003 e 2004, mais de 70 mil famílias sem terra foram vítimas de despejos, ordenados pelo Poder Judiciário e executados violentamente pela polícia militar.


c) É organizada


Apesar da ocorrência de fatos isolados, a violência no campo está ligada às organizações formais ou informais dos latifundiários. São criados consórcios, associações, união de ruralistas, etc., como formas de se estabelecer “redes” de financiamento para os assassinatos e de proteção para as propriedades rurais contra a ação dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, especialmente os sem terra. Estas organizações se valem da contratação e manutenção de milícias privadas e de advogados e promovem a compra de armas, dentre outras ações ilegais. É comum, também, a criação e “empresas de seguranças”, que na verdade são empresas de fachada para dar um caráter de legalidade à contratação de pistoleiros para as fazendas.


3. A VIOLÊNCIA NO ESTADO DO PARÁ


O Estado do Pará tem sido reconhecido nacional e internacionalmente como uma das regiões de maiores índices de violação dos direitos humanos do País. Na origem desse processo está a conflituosa ocupação da terra, especialmente das regiões sul e sudeste daquele estado. A ocupação da região Amazônica foi inicialmente impulsionada pelas políticas dos governos militares, que estimularam a exploração de suas riquezas minerais e naturais pelos grandes grupos econômicos e pecuaristas do sul e sudeste do Brasil. Para incentivar este processo, o governo projetou a expansão da fronteira agrícola através das licitações de grandes áreas públicas, com a formação de grandes fazendas financiadas com recursos do Estado. Além destes projetos incentivou, implementou e financiou várias outras ações estratégicas para a ocupação da Amazônia, a exemplo da rodovia Transamazônica, da hidrelétrica de Tucuruí e do Projeto Ferro Carajás.

O outro lado da ocupação da região Amazônica se deu pela migração de um contingente de trabalhadores sem terra, incentivados por uma ampla campanha nacional que prometia terra para morada e produção. Com isso, uma considerável população pobre migrou para a região. Entretanto, se depararam com a concentração de terras pelos grandes grupos econômicos e pecuaristas, com a falta de infra–estrutura e de atendimento básico, desemprego, malária e muitas outras mazelas. Como alternativas de sobrevivência e de produção esta população partiu para a ocupação de terras públicas ou de latifúndios improdutivos ou para os garimpos. Muitos ainda foram levados para o interior das grandes fazendas onde foram submetidos ao trabalho escravo.

Atualmente, o agronegócio, especialmente movido pela produção de soja e pecuária de corte e pela a valorização dos preços das terras, tem avançado rapidamente sobre a região, considerada a maior fronteira de ocupação agropecuária e extrativista do país.Com a tradicional grilagem de terras públicas, ocupam territórios inteiros, independentemente de estarem ocupadas por posseiros, índios, ribeirinhos ou outros. Promovem a extração ilegal da madeira e transformam estas áreas em lavouras ou pastagens, com enormes custos ambientais e o acirramento da violência contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Neste contexto, a disputa pela posse das terras e pelos modelos de desenvolvimento a serem implementados e consolidados na região, fez com que, no início de 2005, ocorresse um agravamento da violência no campo. Assim, no dia 12 de fevereiro de 2005, a Irmã Dorothy Stang, agente da CPT que trabalhava há 30 anos na região foi brutalmente assassinada. A partir de então, evidenciou-se a situação de violência na região e especialmente no município de Anapú, que está localizado na região centro do Estado do Pará, próximo à chamado “Terra do Meio”, onde 90% do território é considerado de terras devolutas, pertencentes à União ou ao Estado do Pará.

Irmã Dorothy já havia sofrido várias ameaças de morte e feito várias denúncias às autoridades locais e junto ao Governo Federal sobre os conflitos e o crime organizado dos latifundiários e grileiros da região e sobre o envolvimento de autoridades locais e regionais e das Polícias Civil e Militar do Governo Estadual. O crime foi executado por dois pistoleiros, a mando de fazendeiros contrários à implantação dos PDS – Projeto de Desenvolvimento Sustentável, que a missionária ajudava a implementar na região.

Três dias depois, em 15 de fevereiro de 2005, no município de Parauapebas, mais um assassinato motivado por conflitos agrários foi denunciado. Daniel Soares de Souza, militante sindical e presidente da Associação do Projeto de Assentamento Carlos Fonseca, foi morto com seis tiros a queima roupa em uma emboscada, aumentando os números da violência no campo brasileiro. Estes dois fatos registrados em menos de uma semana revelam a constância dos assassinatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais e lideranças no estado do Pará. Entretanto, muitos casos não são, sequer, registrados. Apenas os casos mais evidentes e emblemáticos recebem repercussão nacional e internacional e ajudam a desnudar a realidade local e forçam as autoridades a tomarem providências, a exemplo do assassinato da Irmã Dorothy.


AS AÇÕES DESENCADEADAS NA REGIÃO


O caso do assassinato da missionária Dorothy foi um dos casos com grande repercussão na mídia e que gerou fortes pressões nacionais e internacionais. Exigiu do governo o anuncio de uma série de medidas e um forte investimento para que acontecessem as prisões dos acusados. O governo enviou para a região um contingente com 2.000 soldados do Exército e anunciou uma operação conjunta de órgãos federais envolvendo o Incra, Ibama, Delegacia Regional do Trabalho -DRT, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Forças Armadas.

Entre os compromisso assumidos, está o de intensificar o programa de reforma agrária, ampliando as atividades de regularização fundiária, a retomada das áreas da União ilegalmente ocupadas, o georeferenciamento do território e vistorias de áreas, inclusive com acompanhamento dos técnicos do Ibama e da DRT para verificar a existência de crime ambiental e trabalho escravo. Além disso, governo anunciou a interdição de 8,2 milhões de hectares de florestas em terras da União junto à Rodovia BR-163 (Cuiabá–Santarém), a criação de duas novas áreas de preservação ambiental e de três novas Unidades de Conservação em frentes de expansão da fronteira agrícola.

Estas medidas, sem dúvida, são importantes, mas não podem ser ocasionais e isoladas. A solução dos problemas e da violência contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais exige ações permanentes dos Governos, pela realização da Reforma Agrária e contra a impunidade e o crime organizado. Devem envolver as instituições do Estado, as polícias, os governos estaduais e o judiciário contra todos aqueles que insistem em desafiar e enfrentar as leis, o Estado de direito e as autoridades constituídas.


CONCLUSÃO


A principal exigência para se conter a violência e a violação aos direitos humanos no campo é a realização de uma Reforma Agrária ampla e massiva. Esta política precisa ser, efetivamente, uma ação prioritária do governo, garantindo recursos humanos e financeiros e qualificando a legislação e os instrumentos administrativos para assegurar a agilidade e eficiência das ações. Só com a democratização da terra será possível democratizar o poder e por um fim à truculência, intolerância e ganância dos latifundiários que colocam o direito à terra acima do direito à vida e à cidadania.

É preciso que, de imediato, sejam tomadas medidas efetivas como a conclusão dos processos de desapropriação, o impedimento dos despejos ilegais e arbitrários, a retomada das terras públicas invadidas por grileiros destinando-as aos projetos de assentamento, a ampliação dos recursos para a erradicação do trabalho escravo e a manutenção do Cadastro de Empregadores, conhecido como “Lista Suja”, além da suspensão dos planos irregulares de manejo florestal. Também é indispensável que o Congresso Nacional cumpra o artigo 51 das Disposições Constitucionais Transitórias determinando a revisão das doações, vendas e concessões de terras públicas no país e que coloque em pauta para aprovação imediata a proposta de Emenda Constitucional que confisca as terras onde se explora o trabalho escravo.

É urgente, também, que o poder judiciário priorize o julgamento dos crimes contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais e de outras lideranças no campo.Para por um fim à impunidade é fundamental concluir com rapidez os inquéritos de todos os casos pendentes, levar a julgamento e manter presos todos os culpados pelas atrocidades cometidas contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais de todo o Brasil.


Secretaria de Reforma Agrária e Meio Ambiente da CONTAG

27 de abril de 2005





Fonte:

http://www.rel-uita.org/internacional/ddhh/contag-violencia-campo.htm

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